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BIOMASSA
23/08/2013

Entrevista: Lei faz gestão de resíduos perder “importante fonte de receitas”


A propósito da produção de biogás na ilha de São Miguel, que está prevista entrar em funcionamento ainda este ano e que exigiu um investimento superior a um milhão de euros, o diretor-geral da MUSAMI – Operações Municipais do Ambiente alerta que “no futuro os aterros terão menor capacidade de produzir biogás” e explica porque é que Portugal ainda está muito atrasado em termos de economia de energia.

PER: Porquê optar pelo biogás na Ilha de São Miguel?
Carlos de Andrade Botelho: A gestão adequada de um aterro sanitário exige que se utilize o biogás gerado na produção de energia. Faz parte da estratégia de desempenho ambiental de uma estrutura desta natureza valorizar o biogás em vez de apenas o destruir ou, no pior dos casos, deixar que se disperse.

Quando é que poderemos ter este sistema a fornecer 70 por cento das necessidades energéticas da ilha?
Nenhum sistema vai fornecer 70 por cento das necessidades de energia elétrica da ilha. O que se pretende é ter vários contributos de origem renovável para atingir aquela meta em 2020. Na ilha de São Miguel existe já produção de energia de fonte hídrica, eólica, geotérmica e de biogás (produzido por um digestor anaeróbio). O que se pretende agora é acrescentar energia dos resíduos que representará cerca de 14 por cento do consumo de energia elétrica na ilha. A energia renovável em ilhas tem uma importância ainda maior do que noutros locais, pois evita a importação de combustíveis fósseis muito dispendiosos e poluentes.

Algum biogás está previsto ser usado como combustível para automóveis?
Não, porque não teria continuidade. A deposição de matéria orgânica em aterro está legalmente limitada, o que significa que no futuro os aterros terão menor capacidade de produzir biogás. Este facto trará uma grande alteração na economia da gestão de resíduos dos sistemas nacionais, que perderão uma importante fonte de receitas. Estranhamente ninguém fala deste impacto que se fará sentir nos próximos 10 anos com as decisões tomadas hoje.

Em quantos anos é que o investimento está pago?
Prevê-se sete anos para o retorno do investimento na valorização do biogás de aterro. Já no caso da incineração o retorno é mais difícil, pois mantemos tarifas de deposição de resíduos relativamente baixas. Essa é a vantagem.

Que ganhos é que o projeto pode trazer para o ambiente da ilha?
O projeto do Ecoparque da Ilha de São Miguel é um projeto inovador que permite tratar diversos fluxos de resíduos, como os urbanos, industriais, de matadouro e animais mortos (provenientes do setor primário), além de absorver uma parte dos resíduos de biomassa florestal. Esta configuração dá uma capacidade muito interessante de resolver um conjunto de problemas de difícil resolução numa ilha condicionada por fatores relacionados com a escala. Assim, há um ganho ambiental muito significativo para os setores determinantes da economia açoriana. Mas o que é mais relevante é que se consegue obter um custo de tratamento adequado à economia da ilha cumprindo com todas as exigências atuais e previsíveis da política ambiental comunitária com tecnologias sofisticadas mas flexíveis.

Alguns ambientalistas e o Diretor Geral do Ambiente defenderam o uso do Tratamento Mecânico e Biológico (TMB), por ser menos antigo, mais ecológico e mais barato do que a incineração. Porque optaram por esta solução?
Em primeiro lugar, ninguém deve defender uma tecnologia à partida. Isso é desprovido de qualquer sentido. Temos é que analisar qual o problema que queremos resolver e quais as tecnologias mais adequadas a atingir o objetivo, considerando as condições locais e a realidade local numa perspetiva ampla. O TMB não é mais ecológico nem menos antigo e embora envolva um investimento menor não significa que tenha um custo por tonelada menor. Devo até chamar à atenção para o facto de o tratamento mais sofisticado tecnologicamente ser a incineração e não o TMB. Os TMB conduzem a produtos de baixa qualidade e valor reduzido que terão cada vez mais dificuldade de encontrar mercado e por isso estão a ser abandonados em muitos locais da Europa. Defende-se agora em Portugal a produção de CDR (combustível derivado dos resíduos) que serve para alimentar fornos de cimenteiras. Só que as cimenteiras estão a trabalhar a uma escala baixa e não se prevê nenhum crescimento do setor da construção civil nos próximos anos. Nas condições atuais, o mercado está saturado e o que vemos são sinais de as cimenteiras quererem passar a ter nos resíduos mais um negócio. Acontece que o desempenho ambiental de um incinerador é muito superior ao de uma cimenteira, pelo que esta ideia não é ambientalmente boa, além de ser potencialmente desastrosa em termos económicos para o sector dos resíduos, o que se traduz de seguida em tarifas mais elevadas para os cidadãos. O material destinado a reciclagem é de má qualidade pois está muito contaminado e até o seu mercado mais natural, a China, já coloca reservas à receção de qualquer tipo de material. Convém notar que a incorporação nacional desta matéria-prima secundária é muito baixa. Parece-me que se tem criado uma ideia errada que os TMB farão Portugal atingir as metas de reciclagem. O que acontecerá é que o setor dos resíduos ficará refém das cimenteiras e que os custos de tratamento crescerão muito significativamente com esta estratégia. O nosso projeto parte de um princípio muito simples e muito integrado no espirito da visão europeia do tratamento de resíduos. As recolhas seletivas trarão material destinado à reciclagem de alta qualidade. Já está implementado um sistema de recolha seletiva porta a porta muito eficiente e a população está a aderir de forma continuadamente crescente. A deposição seletiva terá de ser obrigatória mais cedo ou mais tarde, como é em muitos países europeus, pois só assim se ultrapassará um certo patamar. Fazem-se recolhas seletivas de matéria orgânica que dão origem a um composto de alta qualidade. Os resíduos indiferenciados são uma fonte térmica de produção de energia elétrica por incineração que permitirá preços de tratamento de resíduos aceitáveis durante 30 anos. Com esta estratégia teremos um elevado desempenho ambiental com um custo controlado no longo prazo.

Haverá algum pré-tratamento ou uma triagem dos resíduos antes de eles serem enviados para a incineração ou essa solução é muito cara?
Todos os resíduos indiferenciados serão conduzidos a um pré-tratamento que permitirá recuperar cerca de 99 por cento dos metais. Posteriormente, teremos a possibilidade de valorizar as cinzas, pelo que haverá uma grande recuperação de materiais com criação de valor. Mas o princípio é que a reciclagem de plástico e papel se faz recuperando os materiais antes de terem sido misturados, que é o que faz sentido. Nós acreditamos na capacidade da nossa população que não é, para este efeito, diferente das outras populações de países com elevado desempenho. Nem percebo porque é a insistência na ideia que nós não conseguimos ter uma população a participar num processo de reciclagem. É sinal de muito baixa autoestima.

Na procura de resíduos, vão envolver os agricultores da ilha?
Os resíduos agrícolas têm canais próprios que não passam pelos sistemas urbanos. Mas os lavradores passarão a contar com um destino adequado para os animais mortos nas pastagens, assim como os resíduos de matadouro passarão a ter uma linha dedicada de tratamento.

Considera que os portugueses estão conscientes desta alternativa energética ou ainda há muitas barreiras a ultrapassar?
O setor energético tem vivido em Portugal um tempo de grande reestruturação de conceitos em que se geraram grandes desconfianças, nomeadamente com o processo das rendas excessivas. Enquanto o setor não estabilizar e não se tiver uma perspetiva de estabilidade a discussão sobre a produção energética não será realizada de forma adequada. Em toda a parte do mundo desenvolvido os resíduos dão o seu contributo para a produção de energia térmica e elétrica. Não há razão para cá ser diferente. Os portugueses não estão bem informados sobre muitas questões ambientais, entre elas a dos resíduos. E há, infelizmente, pessoas com grande acesso aos órgãos de comunicação social que defendem teses quase infantis, que não teriam acesso a divulgação em culturas mais exigentes, pois só perturbam as decisões consistentes a longo prazo. Mas parece-me que é do lado da economia da energia e da eficiência energética que estamos mais atrasados. Por exemplo, existem imensas fábricas que desperdiçam calor através de chaminés enquanto outras têm de produzir calor. Uma mera gestão das localizações, normalmente referido como ordenamento industrial, pouparia muitos recursos energéticos.

O concurso para a conceção, construção e fornecimento de biogás já foi finalizado?
O concurso do biogás decorre neste momento. O concurso para a conceção, construção e fornecimento de uma central de valorização energética por leito fluidizado teve três consórcios concorrentes e terminou esta fase. Neste momento, prepara-se a fase seguinte.


PER


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